Conto de Natal – o presente indesejado
Hoje saí mais uma vez em busca
de alguém que queira aceitar meu presente. É noite de Natal, então será mais
fácil. Todo ano é assim. Pelo menos uma vez as pessoas querem mostrar que estão
tocadas (ou acham que estão).
Não fico desanimado por isso. É
bom saber que ainda temos uma chance.
Uma casa enorme e muito bem
decorada é minha primeira escolha. Há tantas luzes no jardim que acho que nem
seria necessária iluminação na rua; os postes seriam inconvenientes. Uma árvore
gigante de bolas coloridas cheias de glitter,
um papai Noel no telhado, um boneco de neve feito de isopor do tamanho de um
humano normal. Imaginativo. Por fora está lindo. Mas como estará por dentro?
Bati na porta suavemente,
depois toquei a campainha. Um homem de meia idade, sorrindo, abriu.
Seu sorriso desmanchou no mesmo
instante.
Desta vez caprichei. Aparentava
ter 8 anos. Minha roupa estava rasgada no joelho, manchas escuras ao redor dos
braços e nas calças, cabelo desgrenhado, e o cheiro, ah, o cheiro! Se eu fosse
humano tenho certeza de que não estaria suportando.
Ele resmungou um “o que você
quer?” e eu só retruquei com um “estou com fome e frio”. Ele pediu para eu
passar amanhã. Insisti e ele fechou a porta me dando um empurrão de leve.
Talvez estivesse tentando ser gentil.
Claro que eu não iria voltar.
Ele perdeu a oportunidade do presente.
Passei por mais duas casas. Uma
me deu um pedaço de pão. Bom, mas não o suficiente. Meu presente surtiria pouco
efeito. A outra me jogou um casaco. Aceitei na hora, me despedi e depois passei
por outra criança e o entreguei a ela. Eles não deram de coração, só queriam
que eu não perturbasse.
Depois de passar por quase
todas as casas, eu estava ficando triste. Nenhuma ainda havia sido digna. Nisso,
passei por uma que tinha um modesto pinheiro na entrada, algumas poucas luzes e
um pequeno presépio.
Promissor.
Ansioso, bati a porta com mais
vontade. Desta vez foi o oposto; o homem estava meio mal-humorado, mas abriu um
sorriso quando me viu.
— Pois não?
— Estou com fome e frio.
— Onde estão seus pais?
— Não tenho.
Ele me fitou por alguns
instantes, me avaliando. Pareceu meio receoso e entendo perfeitamente.
Entretanto, abriu a porta e permitiu que eu entrasse.
— Qual seu nome?
— Cris — sorri, com minha boca
cheia de dentes amarelos e cariados.
A mãe pareceu surpresa, mas não
reagiu de modo ruim. Havia um menino com idade próxima à minha, por volta de 7
anos.
— Temos um convidado para a
ceia, mãe — disse o homem sem perder a expressão convidativa.
Ela se empertigou; pude
perceber que estivera chorando. Eles estavam brigando, cheguei bem na hora.
O menino não pareceu estar
muito feliz com minha presença. Será que não aceitaria meu presente? Crianças
costumavam ser bem mais receptivas no passado.
— Boa noite, Cris — disse ela
para mim, tentando manter a expressão alegre — Antes de sentar-se conosco, não
prefere tomar um banho quente? Vou arrumar umas roupas para você.
Sorri acenando afirmativamente.
Meu presente começara. Sem dúvida eles iriam aproveitar bem.
Demorei no banho para fazer
valer ainda mais a pena. Depois de uma boa meia hora na banheira, o pai bateu
na porta e disse que havia algumas roupas para mim penduradas na maçaneta. Saí
da água, enxuguei-me e apanhei as roupas. O menino no final do corredor me
fitava de rabo de olho. Bem, parece que terei alguma dificuldade, mas não pode
ser pior do que as que enfrentei até agora.
Quando desci vestido e
perfumado, a família me recebeu com um sorriso maior e abriram um espaço para
mim à mesa. Atraquei-me com o peru sem cerimônia. Não estava com fome de
verdade, mas precisava fazer com que acreditassem que sim. O menino novamente
torceu o nariz para mim. Meu prato estava enorme, mas eu tinha que me esforçar
para comer tudo. Soltei um arroto nada agradável e eles deram risadinhas. A mãe
olhou para o pai e vi que trocavam olhares divertidos.
Ótimo. Minha presença mudou um
pouco a situação.
Eles possuíam coisas comuns.
Alguns retratos ao redor, quadros, um tapete velho. Nada de muito valor.
— João, por que não passa a
sobremesa para o Cris?
João não pareceu muito contente
ao perceber que eu admirava a casa. Passou o prato sem me fitar nos olhos e
murmurando um “toma” de má vontade.
Sorri para ele, mas não surtiu
muito efeito.
Após a ceia, eles fizeram uma
oração simples. Fiz de conta que não sabia rezar e me ensinaram. Foi divertido.
Arrumaram um lugar para mim no sofá da sala e desligaram as luzes. Disseram que
se eu quisesse alguma coisa, para que subisse e avisasse. Eu acenei com a
cabeça e todos subiram para o segundo andar da casa.
Fiquei sozinho. Esperei que
desse umas onze da noite para levantar. Andei pela casa, fui até a cozinha,
voltei. Eles não eram ricos, mas também não passavam necessidade.
Parei embaixo do pinheiro da
sala. A árvore continha muitos presentes. Demais, até, para uma casa com apenas
três pessoas. A maior parte era endereçada ao menino.
Sentei-me e comecei a chacoalhá-los.
Eram todos brinquedos; ele sem dúvida não era do tipo que ganhava meias no Natal.
Aquela família realmente precisava da minha ajuda.
Ouvi passos na escada. Sorri.
Era tudo o que eu queria.
João ficou alarmado o me ver
segurando um dos pacotes.
— O que você está fazendo?
Ele desceu depressa os últimos
lances de escada e apontou para mim um dedo inquisidor.
— Vou contar para o meu pai.
— Desculpa. Só estava olhando.
Nunca vi tantos presentes.
— Eles são meus!
— Percebi. Vai conseguir
brincar com todos?
— Claro que vou!
Ele relaxou quando eu coloquei
o embrulho de volta na árvore.
— Você tem muita sorte.
João deu de ombros.
— Não é grande coisa. O Luiz da
minha sala ganhou uma viagem pra Disney.
— O que é Disney?
Ele tomou um susto e me fitou
com olhos arregalados.
— Cara, você não sabe o que é a
Disney? Onde você vive?
Eu sorri.
— Por aí.
João deu de ombros.
— O que você ganhou de presente
do papai Noel?
— Papai Noel?
Ele se surpreendeu novamente.
— Não sabe quem é ele? Papai
Noel sempre vem na noite de Natal e coloca presentes para as crianças sob a
árvore!
— Bom... não tenho árvore. Nem
casa. Talvez seja por isso que ele não tenha me dado nada. Não tem onde
colocar.
João sentou-se ao meu lado.
— Você nunca ganhou presente de
Natal?
Sacudi a cabeça negativamente a
pareci abatido.
— Sério? Nem um carrinho?
— Nunca ganhei um carrinho na
vida.
Ele colocou a mão na boca.
— Você brinca com o quê?
Foi minha vez de dar de ombros.
— Às vezes chuto uma latinha
por aí.
Ele pegou um dos embrulhos e o
sacudiu.
— Pedi muitos presentes esse ano.
— Você tem sorte dos seus pais
te darem tanta coisa.
— Foi o papai Noel.
— Bem, você tem sorte do papai
Noel te dar muita coisa, então.
Ele olhou para o alto das
escadas. Sua voz saiu mais sussurrada.
— Meus pais não estavam
contentes com esse monte de presentes. Quer dizer, minha mãe estava, mas meu
pai disse que estava muito zangado de eu ter ganhado tanta coisa. Eles
brigaram. Não sei por quê. Meu pai disse que estavam precisando economizar e
mamãe retrucou dizendo que ele era um velho egoísta.
— Ele é?
Ele pensou por alguns
instantes.
— Acho que não. Quer dizer, ele
deixou você entrar.
— Pois é.
Ficamos em silêncio olhando
para os pacotes sob a árvore e depois para as luzes de diversas cores que nos cegavam
enroladas nela.
— Talvez eu não precise de
tanta coisa assim. Tenho um monte de carrinhos.
— Que sortudo.
— E bolas. E vídeo games.
— Caramba! Nunca tive nada...
João olhou para mim direto nos
olhos.
— Gostaria de ter?
Eu abri a boca parecendo um
peixinho dourado.
— Claro!
Ele mexeu em alguns embrulhos.
A princípio pareceu meio hesitante, mas sacudiu um pequeno e me entregou.
Eu o abri na mesma hora e ele
riu. Dei um grito sufocado pela minha mão quando admirei o carro esporte
brilhante.
— Caramba! Nunca nem toquei em
um desses!
João ficou me observando
enquanto eu empurrava o carrinho em torno do tapete explodindo de alegria.
— Toma. Pode ficar com esse
também.
Eu o admirei com olhos arregalados.
Quase arranquei da mão dele o embrulho e o rasguei como se nunca havia desejado
nada da vida. Era um barco. Gargalhei e abracei os presentes com lágrimas nos
olhos. Conforme eu ia brincando, João ia estendendo para mim os outros
embrulhos. Eu aceitava todos animado e choroso. No final, havia apenas um. Ele
o segurou por um longo tempo.
— Já jogou vídeo game?
Eu tremia de excitação.
— Nunca. Só ouvi falar.
Ele permaneceu segurando o
pacote com dedos vacilantes. Estava em uma batalha profunda em seu íntimo, eu
podia ver.
— Tem algum lugar onde
carregar? Tipo, na luz?
— Eletricidade? Às vezes no
abrigo tem. Posso encontrar alguma nos postes de luz de vez em quando.
Ele deu de ombros e me entregou.
Eu o abri devagar desta vez.
— Como se chama?
— É um PSP. O mais caro da
loja, minha mãe falou.
— Você vai me dar mesmo?
— Bom, eu tenho um armário
cheio de coisas. Acho que nem preciso de tudo isso. Amanhã mesmo vou falar para
os meus pais que quero doar alguns deles para a creche.
— Eles não vão brigar?
— Agora acho que não. Meu pai
tem razão. Eu estou mesmo mal-acostumado.
Sorri e ele também. Brincamos
madrugada adentro. Quando estava para amanhecer, eu disse que precisava ir. Ele
me pediu para voltar outras vezes. Garanti que sim, mas não voltaria nessa
forma, claro. Estaria invisível. Mas voltaria.
Quando estava quase na esquina,
percebi que ele me acenava da porta da casa. Acenei de volta e ele entrou.
Olhei ao meu redor e vi três crianças deitadas na sarjeta, aquecendo-se umas às
outras, ferradas no sono. Despi-me e deixei as roupas com elas. Também deixei
todos os brinquedos e o tal PSP.
Dar é melhor que receber. Será
que não percebem que a sensação de ver o outro feliz é melhor do que um prazer
somente seu e momentâneo?
Deixei esse presente com aquela
família. Eles estarão hoje felizes por terem feito um menino pobre se sentindo feliz
e acolhido. Ficarão com aquela sensação por anos e, enquanto repetirem o gesto,
vão entender o que é felicidade.
Quanto a mim, minha missão
estava cumprida. Amanhã voltarei a outras casas, mas já não será mais tão fácil,
afinal, o Natal acabou. Mas quem disse que missões devem ser simples assim?
Não esqueça de abrir a casa
para mim. Estarei lá para deixar o meu presente.
Não é só para proteger as
pessoas que estamos por aí.
Abra sua porta.
Deixe um anjo entrar.
Vivianne Fair
Bem, espero que tenham gostado!! Não esqueçam da live dia 29 às 20h no Facebook!! :D
Uau, Vi.
ResponderExcluirNão consigo nem digitar direito porque você me fez chorar!!!
Que conto mais emocionante! Exatamente o que eu estava precisando agora!!!
É por isso que eu te amo, amiga!!!
Obrigada!
Beijos
Camis - blog Leitora Compulsiva